quinta-feira, junho 14, 2007

Êxtase


Sobe
Sobe às alturas
Deixe que se estenda em linha
A sequência vital confusa
Que não se abala
Mas leva
Leva o branco líquido
Que da tua teia de nervos
Após um sim coagido
Jorra

Jorra pelas úmidas bordas
Ao redor deste cansaço que pulsa
Pulsa
Entrelaçando as horas

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Nina Delfim

quarta-feira, junho 13, 2007

O Beijo


Quarta-feira. Cinzas até a borda do cinzeiro. Luto.
Na poltrona, o gato. No chão, os cacos. Há no ar uma ardência vermelha que queima. A parede sustenta a desastrosa tentativa de repetir o beijo de Klimt. A moldura, em péssimo estado, enquadra a cena. Em foco estão a ruiva, o homem e uma colcha de hieróglifos. Coxas quentes. O estanho incandescente entranhando o dourado fomenta o holocausto de prazeres praticados sob o tecido. Interseção de fibras. Camadas espessas de tinta ocultam o fundo. Escuro. A visão foge à horizontalidade. Independente do ângulo, todos os elementos convergem suntuosos para o centro. São amantes. Dejetos de luas e estrelas preenchendo o branco de uma sala de cinqüenta metros quadrados. Olhares confessos resguardam as pálpebras fechadas de ambos. Vagos deLírios perfuram a postura preguiçosa dos corpos pousados sobre a tela. Uma atmosfera orgástica flutua por todo o ambiente. O dourado se espalha iluminando o ato. Absortos estão o gato e os dois corpos em conluio. Lá fora, os gerânios debruçados sobre a floreira, aguardam pelo amarelo de Van Gogh. Desmaia finalmente o azul cansado à oeste. Noite. Aciono o timer. A luz a mais entranha a mente. Circunda-me o princípio do óbvio. Não decifro a colcha, mas sei que um Uni-verso paralelo acoberta a razão daquele beijo.
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Nina Delfim

terça-feira, junho 12, 2007

Translação


Finalmente ele fez um movimento. Ancorado à velha poltrona, fechou os olhos e afundou no acaso da ambigüidade que o vinculava à metáfora. Apesar do quase incontrolável desejo de lambê-la até os ossos, encolheu-se. Partículas muito finas encobriam os postulados à bordo de sua mente. Era visível o firme propósito de tê-la presa às costas. Conhecia bem os entremeios das palavras e soube que exatas cem gramas de poesia seriam suficientes àquele coito literário. Mas tão logo o mar por detrás dos olhos o engoliu do cenário, abriu os braços e mergulhou em busca do homem que trazia dentro.
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Nina Delfim

segunda-feira, junho 11, 2007

E aí, Jean-Paul Sartre?


Sr. Sartre, esta manhã fui acometida por Nauseas. Constatei os dois mundos que me abraçam. Enojada me reconheço diante às crenças e teorias que acumulei ao longo destes anos. Convicções me atormentam. Uma Melancolia insiste em me maltratar. Situo-me entre a intensidade desta luz que brilha tanto e na mais profunda escuridão dos pensamentos. Apesar dos esforços, não estou encontrando razões para ultrapassar O muro que ergui, este que me separa de mim. Enclausurei-me em meus próprios métodos. O que faço? Me diz!
Nascem e morrem em mim os meus pensamentos. É minha esta noção de mim?

Corrói-me o resultado do valor que me atribuí durante o enfadonho existir. Nesta situação-limite me oprimem as virtudes, que cobram fidelidade canina ao meu Ser. Minha consciência se transformou em um invasor de sangue-frio e tem me ocasionado conflitos.
Doem-me estes horrores de mim.
Sr. Sartre, o que faço com esta versão existencialista?
Assimilei o desgosto pela humanidade que tanto assolou a mente de Søren Aabye Kierkegaard. Seria o meu inferno mais quente que o dele? Estas chamas que me incineram serão cicatrizadas pelo meu espaço-tempo?
Na lenda da realidade, trafego entre O Ser e o Nada, completamente desorientada e trago As mãos sujas, manchadas pelas atrocidades que cometo diariamente contra este meu estar em-si.
Seria a minha vida uma mera Questão de Método? Devo alterá-los?
O esboço mal confeccionado ao exibir emoções acumuladas me influenciam em demasia. Seriam também seus, estes meus tormentos? Em que canto deste inferno a resposta às minhas indagações se escondeu? Em mim mesma? São quatro os cantos a me abreviar os encantos para vivenciar este inútil auto-conhecimento?
De tudo que eu nunca quis saber, sei excessivamente. Do que pensava saber, nada mais sei.
Sr. Sartre, estou Entre quatro paredes?
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Nina Delfim

quarta-feira, maio 23, 2007

Os Escorpiões

Painting "Shards of Red Gold" by Julia Garcia



O mês de Outubro os excitava
Exibiam-se vorazes,
girando ao redor do fogo que os incendiava.
A dança do acasalamento não cessaria até que
vencidos pelo desejo
copulassem.
Cientes da instintiva ação depois do ato,
movimentar-se-iam com cuidado,
adiando ao máximo o orgasmo um do outro.
Apesar do medo, era irresistível.
A nudez constrangida pelo sol escaldante
foi um convite irrecusável e,
ali mesmo,
aos olhos do sol,
fervilharam os hormônios.
Precoces como o instinto manda,
porém próximos demais.
(Nina)

A satisfação lhes reduziu a tolerância
a natureza assassina tomou seu lugar.
O círculo da condescendência se desfez,
feromônios não perfumavam mais.
Súbito e preciso o instinto gritou:
“Defenda-se escorpião!”
Ergueu-se do coito
antes que ela o decepasse,
no peito dela
seu ferrão cravou.
O sangue que escorreu,
ao genoma "meia volta" ordenou.
Volveu um soldado
para no efêmero buscar o que perdura.
E novamente à procura
de sexo e morte partiu.
(Marte)
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Imune ao veneno inoculado, não se deu por vencida.
Curvada pela dor da fisgada repentina,
lambeu da fenda aberta o sangue Frio que esvaía.
Escorria-lhe por dentro o ódio e,
por entre as pernas,
o desejo de tê-lo inteiro entre elas.
Aquele ataque surpresa seria vingado
da maneira mais dolorosa possível.
Ativando seu arsenal sensitivo,
elaborou com requinte cada um dos passos seguintes.
Esgueirar-se-ia até encontrá-lo.
Acima das quelíceras,
a boca úmida ansiava por sangue, horror e êxtase.
(Nina)
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Escorpião distraído!
Seu par não se mata com veneno,
toxina lenta e corrosiva.
Apunhala-se no peito.
com um só golpe
decisivo e certeiro...
Ao negar a clareza,
da obsessão se fez presa.
Condenou-se a busca vã,
eterna, incessante,
solitária, distante e pagã.
Insubstancial verdade, que assombra à beça,
nem notou que já cheira a sangue.
Não dos predadores quentes,
mas dos necrófagos vermes.
Arrastando seu telson, antes soberbo,
agarrado a pútrida pinça restante, ainda recusa o jazigo.
Segue em marcha querendo vingança.
Certo da morte.
Certo da paz.
Certo de que a amada de si se aparta.
(Marte)
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Susceptível à fúria cega, de fogo líquido ela se encheu.
Seus instintos famintos já o cheiravam.
Somente a morte dele a salvaria.
O abscesso aberto,
seria com maestria vingado.
O sangue coagulado a mantinha prisioneira
da ferroada sexual inesperada e seca.
Durante o gozo sibilante dele,
ela o prenderia em seu sexo e,
com uma das pinças, decepar-lhe-ia a vida.
Uma sensação libidinosa antecipada a assanhava.
O prazer macabro do ritual garantir-lhe-ia a mais cruel das glórias.
Seus opérculos genitais sedentos já ardiam febris.
Mesmo sob efeito do veneno, inoculado covardemente em seu peito,
ela já gozava com o premeditado.
A imaginação,
se sobrepunha à carapaça ostensiva.
Sob a couraça, a fria natureza assassina a mantinha aquecida.
(Nina)
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Andava sem rumo.
Dera-lhe as costas há.muito.
Insistia-lhe o medo. Maya.
O fantasma que o espreitava.
Maya,
o veneno dele e dela.
Maya, a Fúria detenta, o sorriso infantil,
o sexo promíscuo,
castidade servil.
Tudo neles era “aquilo que não é”.
Ao ouvir a música do embate,
fumou um cigarro, como tantos antes.
Soldado, guerreiro sem vitória,
olhou por sobre os ombros e lá estava "aquilo que não é”,
em sangue e cólera
a persegui-lo.
( Marte )
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A trajetória exaustiva até ele
transformara a fúria em um amor cheio de ódio.
A morte tão desejada se fez vulto.
Uma aura dramática imprevista a envolveu.
De joelhos sobre o que sentia,
rasgou o próprio peito
com um golpe duro e definitivo.
Incapaz de suportar a grandiosidade do gesto,
a tirania chorou pelo instante oferecido.
O acurado instinto de sobrevivência
num ímpeto de amor e fúria tomou-a em seus braços,
sorvendo-lhe a intensa paixão prometida
e toda sua adorável natureza inflexível.
A morte dela era vida.
(Nina)
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Perplexo, o escorpião desculpou-se pela vida
e por todas as coisas
cujo controle não mais detinha.
Ao corpo mutilado cantou canções,
todas que aprenderam a chamar de "nossas"
e da vingança se redimiu.
Do sangue intenso que do amor jorrava,
viu brotar pétalas rubras.
Em lágrimas, a elas levou seus lábios
e seu último e desnecessário juramento proferiu:
“Deixo-te em paz meu amor!"

(Marte)






Affair de amor e ódio


Excitado ao vê-la ali
exposta
virgem e aberta sem pudores sobre a superfície fria
Exibiu-lhe a boca sedenta e as mãos ansiosas
Despiu-se dos preconceitos e se entregou à magia dela
À mente latejavam idéias incandescentes
A imaginação desativara-lhe os sentidos passivos
Uma fome de expressar volição própria apossou-se dele
desencadeando um processo cognoscitivo descontrolado
Imagens visuais do que faria com ela queimavam-lhe à boca do estômago
O sentido olfativo intensificado aguçava-lhe a vontade de cheirá-la inteira
Desgustá-la-ia com brutalidade para marcar-se nela em definitivo
Ao observá-la tão indefesa
exteriorizou os mais promíscuos e perversos pensamentos
A rotina pungente o tornara um tolo a repetir-se
Sentia-se estreito e sem qualquer resíduo criativo
Tudo o incitava a livrar-se do convencional
A libido pulsava sob as veias diante a inusitada façanha
As palavras dilatavam-se dentro dele erotizando-o
Um enredo subconsciente surgiu das evocações imaginadas
Quis naquele momento
fazer da inspiração uma secreção corpórea
Quis jorrar-se em rios de leite
Tomado por uma ereção de versos medíocres
excitou-se e num ato brusco atirou-se bruto sobre ela
À mente doentia entregou-se
iniciando com euforia o seu fetiche literário
Diante do inesperado gesto de selvageria
ela nada pôde fazer para contê-lo
Aquela furiosa intervenção súbita a imobilizara por completo
À contragosto só restou obedecer-lho
e às mãos que a prendiam submeter-se
Ao vê-la ali escravizada
reduzida à condição de mero objeto-estímulo
tocou-a com precisão vocabular
devorando-a com os olhos
Severas punições lhe seriam impostas
Seduzi-la-ia antes de marcá-la com a sua eficiência poética
Torturá-la-ia até que o êxtase fosse um desejo incontrolável
Agarrou-se à fragilidade com as unhas
Agraciá-la-ia com o lirismo restante
Amor e ódio se confrontariam num embate vibrante
Violentá-la-ia com todos os ornamentos lingüísticos
A repetição de movimentos proporcionaria o contexto adequado
O último dos seus atos repulsivos seria nela realizado
Com aguçada percepção estética
inseriu-lhe prazerosamente a língua vigorosa
Cada gemido colhido deveria se tornar físico
Entrou em aflição silenciosa ao percebe-la resistente
involuntárias contrações sobrevieram diante a negação
Quanto mais ela se fechava
maior era a vontade de enterrar-se dentro
A posição arbitrária o privilegiava
favorecendo uma penetração dolorosa e alucinante
Abriu-a com rudeza
Meteu-lhe palavras duras até às entranhas
Mãos desesperadas percorriam-na por toda a extensão
Ele era o carrasco e ela
a vítima da sua obcecada inspiração
Adestrá-la-ia à força até torná-la receptiva ao que trazia em si
Cravar-lhe-ia os dentes às partes mais íntimas
e se preciso fosse
rasgar-lhe-ia frente e verso
A respiração ora contida e ora pesada
já anunciava o instante preciso
Banhando-a com versos suados
ofegante
entrava e saia com voracidade e por vezes sucessivas
Num ir e vir primitivo ele a invadia ostensivamente
Movimentava-se confiante
enfiando e retirando-lhe palavras
certo de que um elo indissociável se estabeleceria entre ambos
O silêncio dela cadenciava o ritmo da covardia dele
Um potencial contestável anunciou o momento tão desejado
O açoite semântico contínuo e bruto o colocara à beira do êxtase
O mais intenso espasmo expressivo não tardaria
Em sofrimento mudo ela implorou que o ato fosse concluído
Todo o corpo dele tremia e sem que pudesse se conter
à face clara desmaiada sobre a mesa
despejou-se aos jatos
impregnando-a de versos sujos
Da fenda aberta escorreu-se vulgar com gosto de pele e pêlos
Faltava à inspiração restante a suavidade e a beleza das formas
Sobre a folha SubMetida não havia qualquer sintoma de poesia
Aquele era apenas mais um exercício literário desprezível do poeta
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Nina Delfim

Interstício


Expostos os músculos
aliciamos a carne
vestimo-nos de gozo
e do falo em fogo
entranhando o escuro
que devora homens
derivamos
líquidos

desaguamos frágeis
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Nina Delfim

terça-feira, maio 22, 2007

Apologia da estupidez


Com a atenção fixa no cenário constante de resquícios iniciou os procedimentos habituais enfiando as mãos pelas nervuras abertas. O passado não interessava. A vida, um detalhe desprezível. Há muito a morte lhe trazia o sustento. À garganta, a lâmina ácida dos enganos se movia sobre o eixo da contrariedade, amontoando restos condenados à servidão. Era apenas um corpo de meia idade e de baixa estatura que cheirava mal. Orgulhava-se do automatismo adquirido. Não seria desafio à competência cortá-lo em inúmeros pedaços com os olhos fechados.
Concluída a dissecação, uma bolha de silêncio pairou pesada sobre o tema e das incisões feitas vazou um caldo grosso de palavras, confirmando a causa mortis como intoxicação verbal.
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Nina Delfim

Carnívora flor



Reparou na protagonista, ignorando-lhe a hábil capacidade de captura.
Ainda que não a visse por dentro, com sua visibilidade outra podia sentir o leve aroma do erotismo salientando o orifício que logo mais adiante o devoraria. Boca sedenta. Carnívoro abismo de fluidos translúcidos. Mil dentes aptos e ansiosos por metamorfosear pele, veias e músculos. Na eloquência de seus movimentos deslizou salivante buraco adentro esbarrando acidentalmente nos pêlos colantes que de imediato o levaram ao escuro que de tão profundo mal se via a vulva à míngua encolhida em sua apoteose.
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Nina Delfim

segunda-feira, maio 21, 2007

Floração



Consinta que eu sinta o que sinto
Não quero um amor resumido
Quero detalhes
Quero sintomas
Quero entrelaces
Mãos
Pernas & beijos
Sensações de sentimentos
Vem
Prova de mim
Saciar é a ordem
Aconchegue-se
Adormeça em meus seios
Transpire seus anseios
Prende o meu desejo no seu
Mexe comigo
Remexa consigo
Inverta-nos
Converta-nos num só corpo
E do seu jeito
(sem jeito)
lambuze-nos de amor
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Nina Delfim

domingo, maio 20, 2007

O indulto



No ápice da angústia, mutilou-se. Pequenos detalhes se interpuseram entre a sensação de morte e o desamparo, mas nenhum gemido poderia tornar sonoro o pavor sentido diante do fim da própria coragem. Heróis devem morrer em silêncio. Não há clemência para a vida que se sustenta sobre paradigmas.
Em poucos segundos, o instante irreversível o faria tombar em glória. Ungido por faltas insistia-lhe o incomodo da resistente trama de fios comprimindo o desejo de
ir para além das ausências. À mercê da culpa, a estrutura atrofiada se mostraria inútil. Somente aos olhos restariam alguma expressão, aquela que desce à altura das linhas que conduzem um homem ao esquecimento e que consagra os seus últimos pensamentos.
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Nina Delfim

sexta-feira, maio 18, 2007

Amor de bicho



Libido eriçada

pele de pêlos à mostra
sede selvagem de seivas
de gritos
de dentes cravados
mordidas de bicho
do mato
que queima
que arde
em febre constante
prazer dolorido
arranhando o desejo
aninhando o cio
por cima farejo
por baixo latejo
rastejo
imploro:

me lambe
me morde
faz coisa de bicho
do-mato
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Nina Delfim

domingo, abril 22, 2007

Obra-prima



A quase noite cobria-lhe a feição melancólica. Às mãos, o universo inteiro e um drapejado de velhas dores vindas de lugar nenhum. Desferiu golpes transversais contra a pretensa armadilha dos estereótipos e do branco opaco surgiram brotos de flores em puras cores. Um esboço claro e bem delineado feito de vida floresceu em contornos volumosos e iluminação límpida para adornar o desfecho da sua alma. Ajoelhou-se e às últimas estrelas exibiu seus olhos tristes.
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Nina Delfim

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Código Antropofágico



Órfão de asas firmou os pés sobre a terra molhada, vestiu-se com outras vestes e seguiu. Logo acima, mas fora do seu alcance, flutuava um resto de lua, uma minguante menina cínica com um bouquet de brancos dentes a sorrir da fricção de suas débeis memórias. Circulava-lhe à mente um tempo de horas idas em que fez florescer céus inteiros de estrelas corpóreas. A monstruosidade da mesmice se repetia e era muito enfadonho não poder se mexer. Dia após outro se sintetizava o resultado singular de um temperamento que morria aos poucos no estreito espaço de incontáveis contrapontos. Enquanto desenhava sonhos, muitas imagens se escondiam na lama que já ultrapassava a altura da consciência. No antro do útero-mundo soou um baque surdo de um corpo sem vida que às escuras percorreu sem lua e sem o balé dos vaga-lumes a poesia que sozinha só lhe tecia o medo.
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Nina Delfim

domingo, janeiro 14, 2007

Encontro marcado


Sentaram-se à mesa.

Corpos à mostra exibindo os prazeres suspensos.

De maneira bem comportada trocaram um cumprimento. Tímidos.
Ansiedade circulante. Com requintes de crueldade o bom senso seria devorado em poucos minutos.

O corpo não convenceria o gesto.

- Medo?

- Não. Uma curiosidade nervosa. O momento esperado estava tão atrasado.

- Fome?

- Sim. Estavam famintos. Há muito se desejavam. Devorar-se-iam ali mesmo se o ambiente não fosse tão iluminado.

- Palavras?

- Apenas as necessárias, as que haviam decorado para dizer um ao outro. Aquelas outras ocasionadas pelo cheiro e pelo tato não saiam de suas bocas. Mantinham-nas presas entre os dentes.

- Atração fulminante?

- Alta combustão. O recinto perdeu o frescor. Um calor dos infernos tomou conta de tudo. Primeiro encontro é quase sempre assim...

- Assim, como?

- Ah, olhos nos olhos de ninguém. Um rubor de cem graus bem evidente. O cheiro dela. O cheiro dele. Pernas cruzadas prendendo desejos e depois, a expectativa que é sempre latente logo ao primeiro contato.

- Os dois não perceberam a sua presença?

- Num dado momento pensei que sim. mas não manifestaram reação alguma. Viam-se somente. Mãos inquietas. Gestos constrangidos. Quase me levantei para ir até eles quando os percebi ofegantes.

- Uma interferência tão contundente colocaria um ponto final no seu plano.

- Claro! Segurei-me à cadeira com firmeza para conter a abrupta ânsia. Complicado mesmo foi quando me dei conta de que aquela situação estava me deixando excitado. Minha inércia diante da cena acabou me tornando conivente ao caso.

- O que lhes teria dito?

- Bem, não sei exatamente. Talvez lhes contasse tudo e chorasse um pouco conforme a reação de ambos.
Merda! Agora esta maldita sensação de culpa...

- Calma! Foi só um encontro. Respire fundo e me conte em detalhes.

- A certa altura notei que a vontade de se submeter já empinava os seios dela. Desejei estar entre os dois...
Juntos os três. Entende?

- Sim, mas continue... E o cara?

- Olha, quando ele cruzou as pernas sob a mesa pressionando o sexo entumescido, mentalmente ele já a tinha despido e previsto sucessivas ejaculações entre as coxas dela. Ela estava quente. A face corada a denunciava.

- Ela percebeu a excitação dele?

- Claro que sim! O desgraçado quase gemia...

- Que imaginação fértil!

- A minha também. Quando ela começou a remexer os quadris sobre a cadeira, saquei logo que o suor que molhava o rosto dele era sinal de sacanagem sob a toalha da mesa.

- Deu pra ver alguma coisa?

- Nada além de movimentos sincronizados, mas tenho certeza que ela se viu introduzida até a exaustão porque um cheiro de sexo impregnou o ar logo que os dois passaram por mim em direção ao banheiro.

- E o jantar?

- Não comeram nada!

- Por quê?

- O celular dele tocou.

- Quem era?

- Ele não disse a ela. Levantou-se e saiu.

- Sozinho?

- Sim.

- E ela?

- Saiu em seguida..

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Nina Delfim

sexta-feira, janeiro 12, 2007

O julgamento de Don Juan


A Verdade atrevida, opondo-se à Mentira, disparou assertiva:
- Levante sua mão esquerda e se pronuncie sob juramento.
Jura solenemente dizer a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade?


Antes que o acusado se confirmasse sob juramento, a Mentira, cheia de recursos interferiu:
- Eu protesto! A Verdade está tentando conduzir o juri a duvidar do caráter do Réu. Não é justo exigir que o acusado se pronuncie de tal modo. Até que se prove o contrário ele não é um mentiroso. Não há provas anexadas ao processo atestando a premeditação dos seus atos, portanto não poderá ser responsabilizado pela conseqüência dos mesmos. Que fique bem claro a todos aqui presentes que não servirei à Acusação como testemunha. Só existo enquanto ação consciente!

O Bom-senso que ouvia em silêncio a interferência da Mentira, ao constatar um possível início de atrito entre o fato e a suposta intenção do ato, aproximou-se lentamente do Júri e em tom comedido ponderou:
- Por favor, um minuto! Há que se ouvir com muito cuidado os testemunhos da Acusação e da Defensoria. Precisamos nos manter atrelados aos princípios da justiça.
Atente-se para o fato de que verdade é mera questão de ponto de vista. Sejamos todos sensatos!

A razão, conivente ao Bom-senso, pediu um aparte e acrescentou:
- Se excluirmos a ingenuidade de ambos os lados chegaremos naturalmente a um consenso.
Nada é definitivo se puder ser contestado!

O cinismo pede à vez que não lhe é de direito e com um sorriso amarelo arremessa sarcástico:
- Enquanto justificável, o fim acabará por aprovar os meios...

A Raiva, também presente no recinto, cravou os dentes na fragilidade existente. Ergueu-se abruptamente, lambeu a própria ira com a língua ferina e cuspiu suas odiosas palavras em tom de ameaça:
- Se a verdade não prevalecer, não sei o que serei capaz de fazer...

A fim de conter os ânimos, o Juiz agitado, com o punho cerrado desfere sobre a mesa o golpe certeiro:
- Silêncio no tribunal!

Registradas as colocações, o Réu é convidado a se pronunciar sob juramento.
- Eu juro!

O amor foi chamado ao banco das testemunhas. Optou por sentar-se à esquerda do réu.
A consciência coletiva deu então início ao interrogatório, perguntando à testemunha:
- Poderia o senhor nos informar o porquê do acusado ter feito tantas vítimas.

Apesar de constrangido pela situação o Amor respondeu:
- Não sinto deste modo. A meu ver estou sendo confundido com o Ódio. Foi Afeto desmedido o que ele deu a todas que envolveu. Culpá-lo está fora de cogitação. As reclamantes, estas sim deveriam ser punidas. Condenadas à pena perpétua. As supostas mal amadas vítimas sabem que não sou eterno. Tenho início, meio e fim.

A Acusação protesta:
- O Amor é por demais evasivo! Peço que seja dispensado como testemunha do caso.
Aos olhos da justiça (que é cega) o protesto é aceito e o testemunho retirado dos autos do processo.

A verdade se impôs com um basta e ao acusado lançou a questão tão aguardada:
- Pode nos dizer o que o faz agir de modo tão fugaz?


Todas as atenções se voltam para a Expectativa, mas convicto quanto a inexistência da Culpa, o Réu inicia seu depoimento e com voz de quem nada teme confessa:

- Sou inocente até que se prove o contrário.
Amei intensamente enquanto amava.
Não posso ser acusado de ter feito uso premeditado das que se alegam vitimadas.
Amor é sentimento que não se prende ou se controla.
Quanto a Sedução, ela faz parte do processo e a conquista é conseqüência natural das premissas.
A Razão das minhas investidas está intimamente ligada à minha capacidade de amar que, de fato, é infinita!
Quanto aos sentimentos alheios, penso que cada um deve cuidar dos seus.
Amo em verdade, mas por tempo limitado. Pelo tempo que dura o amor.
Dizem que sou imaturo, nem por isso me sinto culpado. O fato de não me apegar não me torna um criminoso, muito menos um devasso.
Sinto-me saciado quando amo e sou amado. Em nenhum momento recebi das senhoras que me acusam a quantia de amor que necessito. Eu sim, fui usado a contento por todas elas.
Frio interventor de frágeis almas? Isto é um absurdo! Não sou nada disso! Tenho boa índole. Sou bem intencionado!
No que me diz respeito, sou perfeito! Apenas quero ter em minhas mãos o que desejo e uma vez às mãos, se insatisfeito... Serei julgado por isso?
Fidelidade? Nem sei do que se trata. Desconheço os rigores das regras.
Sou livre de apegos.
"Que crime cometo quando amo?"

A conseqüência da causa, perdida na confusão, lamenta-se como vítima da situação:
- Isto não diminui o resultado das ações do acusado!

A intolerância agitada tampa os ouvidos num ato reflexo e com o dedo em riste, diz em tom alto:
- Não podemos aceitar isto. O acusado agora se diz vítima da situação por ele mesmo criada.
Se nada for feito, farei justiça com as minhas próprias mãos!

Aturdidas pela discussão, Verdade e Mentira estacionam no impasse. Julgamento suspenso.
N
ova data deverá ser marcada para que se apurem os atos do suposto devasso.
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Nina Delfim

terça-feira, janeiro 02, 2007

Pós-mortem

Eu sei que tens a garganta ressentida
Mas de nada te servirá o grampo preso ao nariz
O cheiro ácido que a morte exala
Nem mesmo os necrófagos cravos dissipam
Erga-te homem e e
nxuga os olhos
Ela está morta!
Jogue a carne apodrecida aos abutres
Desvia teu olhar deste leito ensopado de memórias
É pálida a tez do náufrago corpo que nele flutua
Não vês que a morte já se fez fecunda
Jaz em tímido jazigo a face em fogo que te ardia
Anêmico é o sangue estancado àquelas artérias
Onde havia um coração não há mais nada
Óbvia é a tristeza da perda
Revigora-te a alvura das idéias inomináveis
O fim é um frívolo assassino sem rosto
Erga-te e p
õe teus gestos em combate
Deixa verter tuas minúcias pelos pontos da ruptura

Deixa nascer o bastardo pensamento-deus
Que recém-nascido
da mortalha de tantos outros Eus
A verdade não contesta
“Inês é morta!”
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Nina Delfim

sábado, dezembro 30, 2006

Souvenir


Aqui me tenho
Feto sem útero
Cores em profusão
Rosto sem expressão
Polindo minha superfície
Entre a essência e a beleza
Sem o brilho natural da pele
Concebida pela reflexão alheia
Sob um universo de estrelas cegas
No reino dos restos do criador morto
Sorris a me esperar?
.
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Nina Delfim

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Bouquet

Enraizei-me em ti e te molhei de mim
Do entremeio nós
No ponto máximo do amor
Brotamos fecundos
Floressência
Fruta madura
Mousse macia
Polpa de cores
Amarelo-citrino e Vermelho-rubi
Macerados pelo tempo
Ainda te sinto
Guardo no carvalho o teu cheiro distinto
Retro-olfato apaixonante
Retro-gosto à boca
Sabor persistente
Madeira e tabaco confluindo em equilíbrio
Nas lágrimas bem formadas
Insisto-me Cassis
(o meu frutado mais doce)
Morango maduro
Com toques de cereja e blueberry
Inebriantes
Embriagar-nos-emos aveludados
Adstringentes seremos
.
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Nina Delfim

Liturgia do pecado


O nosso altar ficou pronto
não tem os afrescos de Masaccio

nem os de Michelangelo
É simples
É promíscuo
É divino
Adão & Eva aos pés da cruz
despidos de apegos
ajoelhados sobre o desejo
sem vestes morais
copulam delícias
comungam sob a nave escura
os prazeres carnais
Dois anjos nus
libertos da luz que condena
livres de tudo que aprisiona
tornam-se cúmplices do imensurável amor
e entoando Aleluias
erguem-se limpos aos céus mais íntimos
glorificando o gozo divino
aos olhos de um suposto Deus nas alturas
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Nina Delfim

segunda-feira, dezembro 25, 2006

Pietá


Em ti me encontrei
Em mim te perdi
Algemada à tua vida
Fiz do amor sentido
Minha regra de conduta
Cada grito meu
Uma ereção tua
Cada palavra tua
Um êxtase meu
Excitamos em nós dois a fome de amor
Mas impiedoso
O destino me afasta do sonho
Insaciável
O fim me aguarda
Ele já tem os cravos às mãos brutas
E sei que é chegada a hora
Ofereço-te meu corpo
Se tens fome de mim
Prova desta dor que me consome
Se tens sede
Mate-a nestas lágrimas que derramo
Regozija-te em mim porque eu te amo
De onde estou não mais te vejo
Já ouço os ais do meu martírio
Sinto meu corpo sendo rasgado
Para que tu saias de mim
Dilacerada por mãos que não temo
Ainda te quero
Sou prisioneira das orgias que previ
Mesmo na cruz
Desejo tuas negações excitantes
Anseio-te na luxúria dos meus quadris
Desata-me!
Liberta-me de ti!
Já sinto os cravos
Sangro saudades tuas
Escorro-me rubra
Não ouses ouvir meus gritos
Não quero que sofras comigo
Se o amor tiver que morrer
Que o crime seja perfeito
Crucifica-me!
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Nina Delfim