sexta-feira, janeiro 12, 2007

O julgamento de Don Juan


A Verdade atrevida, opondo-se à Mentira, disparou assertiva:
- Levante sua mão esquerda e se pronuncie sob juramento.
Jura solenemente dizer a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade?


Antes que o acusado se confirmasse sob juramento, a Mentira, cheia de recursos interferiu:
- Eu protesto! A Verdade está tentando conduzir o juri a duvidar do caráter do Réu. Não é justo exigir que o acusado se pronuncie de tal modo. Até que se prove o contrário ele não é um mentiroso. Não há provas anexadas ao processo atestando a premeditação dos seus atos, portanto não poderá ser responsabilizado pela conseqüência dos mesmos. Que fique bem claro a todos aqui presentes que não servirei à Acusação como testemunha. Só existo enquanto ação consciente!

O Bom-senso que ouvia em silêncio a interferência da Mentira, ao constatar um possível início de atrito entre o fato e a suposta intenção do ato, aproximou-se lentamente do Júri e em tom comedido ponderou:
- Por favor, um minuto! Há que se ouvir com muito cuidado os testemunhos da Acusação e da Defensoria. Precisamos nos manter atrelados aos princípios da justiça.
Atente-se para o fato de que verdade é mera questão de ponto de vista. Sejamos todos sensatos!

A razão, conivente ao Bom-senso, pediu um aparte e acrescentou:
- Se excluirmos a ingenuidade de ambos os lados chegaremos naturalmente a um consenso.
Nada é definitivo se puder ser contestado!

O cinismo pede à vez que não lhe é de direito e com um sorriso amarelo arremessa sarcástico:
- Enquanto justificável, o fim acabará por aprovar os meios...

A Raiva, também presente no recinto, cravou os dentes na fragilidade existente. Ergueu-se abruptamente, lambeu a própria ira com a língua ferina e cuspiu suas odiosas palavras em tom de ameaça:
- Se a verdade não prevalecer, não sei o que serei capaz de fazer...

A fim de conter os ânimos, o Juiz agitado, com o punho cerrado desfere sobre a mesa o golpe certeiro:
- Silêncio no tribunal!

Registradas as colocações, o Réu é convidado a se pronunciar sob juramento.
- Eu juro!

O amor foi chamado ao banco das testemunhas. Optou por sentar-se à esquerda do réu.
A consciência coletiva deu então início ao interrogatório, perguntando à testemunha:
- Poderia o senhor nos informar o porquê do acusado ter feito tantas vítimas.

Apesar de constrangido pela situação o Amor respondeu:
- Não sinto deste modo. A meu ver estou sendo confundido com o Ódio. Foi Afeto desmedido o que ele deu a todas que envolveu. Culpá-lo está fora de cogitação. As reclamantes, estas sim deveriam ser punidas. Condenadas à pena perpétua. As supostas mal amadas vítimas sabem que não sou eterno. Tenho início, meio e fim.

A Acusação protesta:
- O Amor é por demais evasivo! Peço que seja dispensado como testemunha do caso.
Aos olhos da justiça (que é cega) o protesto é aceito e o testemunho retirado dos autos do processo.

A verdade se impôs com um basta e ao acusado lançou a questão tão aguardada:
- Pode nos dizer o que o faz agir de modo tão fugaz?


Todas as atenções se voltam para a Expectativa, mas convicto quanto a inexistência da Culpa, o Réu inicia seu depoimento e com voz de quem nada teme confessa:

- Sou inocente até que se prove o contrário.
Amei intensamente enquanto amava.
Não posso ser acusado de ter feito uso premeditado das que se alegam vitimadas.
Amor é sentimento que não se prende ou se controla.
Quanto a Sedução, ela faz parte do processo e a conquista é conseqüência natural das premissas.
A Razão das minhas investidas está intimamente ligada à minha capacidade de amar que, de fato, é infinita!
Quanto aos sentimentos alheios, penso que cada um deve cuidar dos seus.
Amo em verdade, mas por tempo limitado. Pelo tempo que dura o amor.
Dizem que sou imaturo, nem por isso me sinto culpado. O fato de não me apegar não me torna um criminoso, muito menos um devasso.
Sinto-me saciado quando amo e sou amado. Em nenhum momento recebi das senhoras que me acusam a quantia de amor que necessito. Eu sim, fui usado a contento por todas elas.
Frio interventor de frágeis almas? Isto é um absurdo! Não sou nada disso! Tenho boa índole. Sou bem intencionado!
No que me diz respeito, sou perfeito! Apenas quero ter em minhas mãos o que desejo e uma vez às mãos, se insatisfeito... Serei julgado por isso?
Fidelidade? Nem sei do que se trata. Desconheço os rigores das regras.
Sou livre de apegos.
"Que crime cometo quando amo?"

A conseqüência da causa, perdida na confusão, lamenta-se como vítima da situação:
- Isto não diminui o resultado das ações do acusado!

A intolerância agitada tampa os ouvidos num ato reflexo e com o dedo em riste, diz em tom alto:
- Não podemos aceitar isto. O acusado agora se diz vítima da situação por ele mesmo criada.
Se nada for feito, farei justiça com as minhas próprias mãos!

Aturdidas pela discussão, Verdade e Mentira estacionam no impasse. Julgamento suspenso.
N
ova data deverá ser marcada para que se apurem os atos do suposto devasso.
.
.
.
Nina Delfim

2 comentários:

Anônimo disse...

hahahahahahah , adorei...amei de verdade...só entende quem na alma sente.
Te amo! Fica em paz.

Anônimo disse...

Sem dúvida que ninguém pode ser condenado até que se prove o contrário. Mas contra factos não há argumentos possíveis!!
Não se trata de nenhum acto criminoso e censurável por lei, mas antes de um acto condenável moralmente. E porquê? A partir do momento em que temos conciência das nossas acções e intenções, estamos a agir de forma ciente e responsável. De todo o modo, de boas intenções, está o inferno cheio.
Poderá haver atenunates ao grau de culpa, mas esta não deixa de existir e como tal não pode deixar de ser condenável.
I rest my case!

Metamorphoseon