terça-feira, fevereiro 20, 2007

Código Antropofágico



Órfão de asas firmou os pés sobre a terra molhada, vestiu-se com outras vestes e seguiu. Logo acima, mas fora do seu alcance, flutuava um resto de lua, uma minguante menina cínica com um bouquet de brancos dentes a sorrir da fricção de suas débeis memórias. Circulava-lhe à mente um tempo de horas idas em que fez florescer céus inteiros de estrelas corpóreas. A monstruosidade da mesmice se repetia e era muito enfadonho não poder se mexer. Dia após outro se sintetizava o resultado singular de um temperamento que morria aos poucos no estreito espaço de incontáveis contrapontos. Enquanto desenhava sonhos, muitas imagens se escondiam na lama que já ultrapassava a altura da consciência. No antro do útero-mundo soou um baque surdo de um corpo sem vida que às escuras percorreu sem lua e sem o balé dos vaga-lumes a poesia que sozinha só lhe tecia o medo.
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Nina Delfim

Um comentário:

Anônimo disse...

em curtíssimas linhas, voce parece conseguir traçar a trajetória de um ser que, "orfão de asas", adquire uma nova percepçao de mundo, surpreso e atordoado. gostei quando no segundo parágrafo voce sintetiza a reação da lua frete a "queda" do personagem. me passou uma sensação de abandono e rejeição muito concreta. depois, voce conduz bem a relaçao entre a perda de algo (simbolizado pelas asas) e a degradação do personagem, que imerso em sonhos, porém atormentado pela realidade enfadonha, repetitiva e lamacenta (usando termos do seu conto), morre desconsolado. a cena da morte é triste e liga o medo à poesia. minha interpretação pessoal pra tudo isso é: alguém que, não mais conseguindo viver a poesia e escrever poemas, volta à condição de "humano comum". nao podendo suportá-la, tem seu desfecho abafado e surdo, porém libertador. nina, suas imagens agora se tornaram metafóricas, oníricas (relativo aos sonhos, com a fluidez e a [I]logicidade própria deles) e exemplares (tipo assim, com apenas uma imagem concisa e poetizada voce procura transmitir um processo longo e contínuo, sem precisar descrevê-lo em detalhes). assim, creio que voce está revelando um estilo próprio muito criativo. uma coisa que muito me agradou foi a não-utilização de nomes: isso torna o texto mais geral e abrangente. além disso, mesmo se o personagem do texto for um alter-ego do autor, não é recomendável usar a primeira pessoa (eu, eu, eu... ninguem quer saber de voce ou de mim, senão de si mesmos!)
23/06/2006 13h32