segunda-feira, janeiro 09, 2006

Além da visão (Dueto)


Os livros estão espalhados pelo chão... montanhas de livros nesta sala... gostas de ver-me assim sentada e nua... assim... nesta pilha de livros... são páginas e páginas de uma vida... de vidas e vidas...

Gosto sim. E quem não gostaria de assim te ver? A imagem do teu corpo envolto de livros, de páginas e palavras dançantes, palavras cantantes, recorda-me que uma imagem vale mais que mil palavras. A imagem que tenho de ti revela-me muito mais a teu respeito que me poderiam dizer todos os livros que vejo aqui espalhados.

Eu sei que queres ler-me. Sei que queres ler todas as páginas da minha vida... eu sei... vejo o desejo crescer através dos teus olhos...

Um olhar diz tudo. O meu olhar diz tudo sim. O meu olhar diz-te tudo e não te mente, não te engana...

Não digas nada então... Eu pego nas tuas mãos. Não olhes mais para o meu corpo. Agora tenho vergonha. Quando me olhas eu vejo dez pares de olhos de vidas passadas... sinto-me angustiada... fecha-os para que não recorde quartos que transpiram a sexo. Fecha-os para que as imagens não me sigam e me assombrem nesta sala cheia de livros... Não, não fales!... não olhes... eu falo por ti. Adivinho-te cada pensamento que te assombra neste momento. Tens medo. Eu sinto a minha angústia que te provoca um pânico delicioso. Agarro as tuas mãos.

Sei que me proibiste de falar e de te olhar, mas não consigo impedir as minhas mãos de falarem por mim, de olharem por mim... através das minhas mãos eu vejo-te, eu leio-te... sinto cada palavra no teu silêncio, cada palavra enterrada no teu corpo. Palavras que te deixaram; palavras que nunca disseste. E eu sigo-te... sigo o teu corpo como se fosse espécie de bengala. O teu corpo é luz e é caminho. Eu sou um cego que te segue. Mas fico calado e quieto. Respeito-te porque respeito a tua vontade.

Deixa-os fechados. Deixa os teus olhos fechados. Assim não sinto vergonha do meu corpo ausente de olhos passados, de mãos passadas. De quartos que ainda hoje transpiram sexo. Eu fiquei lá. Sente esta página. Vê com os dedos os rasgos que deixaram ao lê-la... Sinto as tuas mãos percorreram cada folha de mim... sinto os teus dedos... tocas-me suavemente... tens medo que esta e esta página acabem por desprender-se de mim... Em tempos, pedi-te que me abrisses e me lesses... relê-me outra vez. Lê agora as páginas arrancadas. As minhas páginas arrancadas. As páginas secretas, obscuras... que só um cego consegue ler...

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Alexandra Antunes e Corto Maltese