domingo, janeiro 14, 2007

Encontro marcado


Sentaram-se à mesa.

Corpos à mostra exibindo os prazeres suspensos.

De maneira bem comportada trocaram um cumprimento. Tímidos.
Ansiedade circulante. Com requintes de crueldade o bom senso seria devorado em poucos minutos.

O corpo não convenceria o gesto.

- Medo?

- Não. Uma curiosidade nervosa. O momento esperado estava tão atrasado.

- Fome?

- Sim. Estavam famintos. Há muito se desejavam. Devorar-se-iam ali mesmo se o ambiente não fosse tão iluminado.

- Palavras?

- Apenas as necessárias, as que haviam decorado para dizer um ao outro. Aquelas outras ocasionadas pelo cheiro e pelo tato não saiam de suas bocas. Mantinham-nas presas entre os dentes.

- Atração fulminante?

- Alta combustão. O recinto perdeu o frescor. Um calor dos infernos tomou conta de tudo. Primeiro encontro é quase sempre assim...

- Assim, como?

- Ah, olhos nos olhos de ninguém. Um rubor de cem graus bem evidente. O cheiro dela. O cheiro dele. Pernas cruzadas prendendo desejos e depois, a expectativa que é sempre latente logo ao primeiro contato.

- Os dois não perceberam a sua presença?

- Num dado momento pensei que sim. mas não manifestaram reação alguma. Viam-se somente. Mãos inquietas. Gestos constrangidos. Quase me levantei para ir até eles quando os percebi ofegantes.

- Uma interferência tão contundente colocaria um ponto final no seu plano.

- Claro! Segurei-me à cadeira com firmeza para conter a abrupta ânsia. Complicado mesmo foi quando me dei conta de que aquela situação estava me deixando excitado. Minha inércia diante da cena acabou me tornando conivente ao caso.

- O que lhes teria dito?

- Bem, não sei exatamente. Talvez lhes contasse tudo e chorasse um pouco conforme a reação de ambos.
Merda! Agora esta maldita sensação de culpa...

- Calma! Foi só um encontro. Respire fundo e me conte em detalhes.

- A certa altura notei que a vontade de se submeter já empinava os seios dela. Desejei estar entre os dois...
Juntos os três. Entende?

- Sim, mas continue... E o cara?

- Olha, quando ele cruzou as pernas sob a mesa pressionando o sexo entumescido, mentalmente ele já a tinha despido e previsto sucessivas ejaculações entre as coxas dela. Ela estava quente. A face corada a denunciava.

- Ela percebeu a excitação dele?

- Claro que sim! O desgraçado quase gemia...

- Que imaginação fértil!

- A minha também. Quando ela começou a remexer os quadris sobre a cadeira, saquei logo que o suor que molhava o rosto dele era sinal de sacanagem sob a toalha da mesa.

- Deu pra ver alguma coisa?

- Nada além de movimentos sincronizados, mas tenho certeza que ela se viu introduzida até a exaustão porque um cheiro de sexo impregnou o ar logo que os dois passaram por mim em direção ao banheiro.

- E o jantar?

- Não comeram nada!

- Por quê?

- O celular dele tocou.

- Quem era?

- Ele não disse a ela. Levantou-se e saiu.

- Sozinho?

- Sim.

- E ela?

- Saiu em seguida..

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Nina Delfim

sexta-feira, janeiro 12, 2007

O julgamento de Don Juan


A Verdade atrevida, opondo-se à Mentira, disparou assertiva:
- Levante sua mão esquerda e se pronuncie sob juramento.
Jura solenemente dizer a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade?


Antes que o acusado se confirmasse sob juramento, a Mentira, cheia de recursos interferiu:
- Eu protesto! A Verdade está tentando conduzir o juri a duvidar do caráter do Réu. Não é justo exigir que o acusado se pronuncie de tal modo. Até que se prove o contrário ele não é um mentiroso. Não há provas anexadas ao processo atestando a premeditação dos seus atos, portanto não poderá ser responsabilizado pela conseqüência dos mesmos. Que fique bem claro a todos aqui presentes que não servirei à Acusação como testemunha. Só existo enquanto ação consciente!

O Bom-senso que ouvia em silêncio a interferência da Mentira, ao constatar um possível início de atrito entre o fato e a suposta intenção do ato, aproximou-se lentamente do Júri e em tom comedido ponderou:
- Por favor, um minuto! Há que se ouvir com muito cuidado os testemunhos da Acusação e da Defensoria. Precisamos nos manter atrelados aos princípios da justiça.
Atente-se para o fato de que verdade é mera questão de ponto de vista. Sejamos todos sensatos!

A razão, conivente ao Bom-senso, pediu um aparte e acrescentou:
- Se excluirmos a ingenuidade de ambos os lados chegaremos naturalmente a um consenso.
Nada é definitivo se puder ser contestado!

O cinismo pede à vez que não lhe é de direito e com um sorriso amarelo arremessa sarcástico:
- Enquanto justificável, o fim acabará por aprovar os meios...

A Raiva, também presente no recinto, cravou os dentes na fragilidade existente. Ergueu-se abruptamente, lambeu a própria ira com a língua ferina e cuspiu suas odiosas palavras em tom de ameaça:
- Se a verdade não prevalecer, não sei o que serei capaz de fazer...

A fim de conter os ânimos, o Juiz agitado, com o punho cerrado desfere sobre a mesa o golpe certeiro:
- Silêncio no tribunal!

Registradas as colocações, o Réu é convidado a se pronunciar sob juramento.
- Eu juro!

O amor foi chamado ao banco das testemunhas. Optou por sentar-se à esquerda do réu.
A consciência coletiva deu então início ao interrogatório, perguntando à testemunha:
- Poderia o senhor nos informar o porquê do acusado ter feito tantas vítimas.

Apesar de constrangido pela situação o Amor respondeu:
- Não sinto deste modo. A meu ver estou sendo confundido com o Ódio. Foi Afeto desmedido o que ele deu a todas que envolveu. Culpá-lo está fora de cogitação. As reclamantes, estas sim deveriam ser punidas. Condenadas à pena perpétua. As supostas mal amadas vítimas sabem que não sou eterno. Tenho início, meio e fim.

A Acusação protesta:
- O Amor é por demais evasivo! Peço que seja dispensado como testemunha do caso.
Aos olhos da justiça (que é cega) o protesto é aceito e o testemunho retirado dos autos do processo.

A verdade se impôs com um basta e ao acusado lançou a questão tão aguardada:
- Pode nos dizer o que o faz agir de modo tão fugaz?


Todas as atenções se voltam para a Expectativa, mas convicto quanto a inexistência da Culpa, o Réu inicia seu depoimento e com voz de quem nada teme confessa:

- Sou inocente até que se prove o contrário.
Amei intensamente enquanto amava.
Não posso ser acusado de ter feito uso premeditado das que se alegam vitimadas.
Amor é sentimento que não se prende ou se controla.
Quanto a Sedução, ela faz parte do processo e a conquista é conseqüência natural das premissas.
A Razão das minhas investidas está intimamente ligada à minha capacidade de amar que, de fato, é infinita!
Quanto aos sentimentos alheios, penso que cada um deve cuidar dos seus.
Amo em verdade, mas por tempo limitado. Pelo tempo que dura o amor.
Dizem que sou imaturo, nem por isso me sinto culpado. O fato de não me apegar não me torna um criminoso, muito menos um devasso.
Sinto-me saciado quando amo e sou amado. Em nenhum momento recebi das senhoras que me acusam a quantia de amor que necessito. Eu sim, fui usado a contento por todas elas.
Frio interventor de frágeis almas? Isto é um absurdo! Não sou nada disso! Tenho boa índole. Sou bem intencionado!
No que me diz respeito, sou perfeito! Apenas quero ter em minhas mãos o que desejo e uma vez às mãos, se insatisfeito... Serei julgado por isso?
Fidelidade? Nem sei do que se trata. Desconheço os rigores das regras.
Sou livre de apegos.
"Que crime cometo quando amo?"

A conseqüência da causa, perdida na confusão, lamenta-se como vítima da situação:
- Isto não diminui o resultado das ações do acusado!

A intolerância agitada tampa os ouvidos num ato reflexo e com o dedo em riste, diz em tom alto:
- Não podemos aceitar isto. O acusado agora se diz vítima da situação por ele mesmo criada.
Se nada for feito, farei justiça com as minhas próprias mãos!

Aturdidas pela discussão, Verdade e Mentira estacionam no impasse. Julgamento suspenso.
N
ova data deverá ser marcada para que se apurem os atos do suposto devasso.
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Nina Delfim

terça-feira, janeiro 02, 2007

Pós-mortem

Eu sei que tens a garganta ressentida
Mas de nada te servirá o grampo preso ao nariz
O cheiro ácido que a morte exala
Nem mesmo os necrófagos cravos dissipam
Erga-te homem e e
nxuga os olhos
Ela está morta!
Jogue a carne apodrecida aos abutres
Desvia teu olhar deste leito ensopado de memórias
É pálida a tez do náufrago corpo que nele flutua
Não vês que a morte já se fez fecunda
Jaz em tímido jazigo a face em fogo que te ardia
Anêmico é o sangue estancado àquelas artérias
Onde havia um coração não há mais nada
Óbvia é a tristeza da perda
Revigora-te a alvura das idéias inomináveis
O fim é um frívolo assassino sem rosto
Erga-te e p
õe teus gestos em combate
Deixa verter tuas minúcias pelos pontos da ruptura

Deixa nascer o bastardo pensamento-deus
Que recém-nascido
da mortalha de tantos outros Eus
A verdade não contesta
“Inês é morta!”
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Nina Delfim