quarta-feira, outubro 25, 2006

DOI-CODI

um resto indefeso
violado
encharcado
marcado a ferros

á boca um trapo
sufocando gritos
doídos
constantes

Inflexível Ódio
fardado
bordunas
golpes de aço
testículos
anus rompido
honra e ossos quebrados

Super-homem vencido

herói sem história

Rins

alma

baço

sofrimento extraído

bisturi

escuro afiado

capuz aliado
do medo

espirrado
escorrendo esperança
perdida

distante da vida

urinou
gemeu
defecou
implorou pela morte

Pausa
Parada súbita
Um grito carrasco ordenou:

“Chama o doutor! O merda ainda não assinou!”
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“Senhor Deus dos desgraçados,
Dizei-me Vós, Senhor Deus, Se é mentira,
se é verdade, Tanto horror perante os céus.”
(Castro Alves)
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Nina Delfim

terça-feira, outubro 24, 2006

Nudas veritas



Recuou. Precisava de um pouco mais de tempo. Parecia-lhe indissolúvel o elo estabelecido entre ambos. A luz flamejante iluminou o caminho. Absorto pelas sensações internas desviou o olhar da tentadora curiosidade em vislumbrar as armadilhas que o aguardavam. Resistiria com bravura ao mosaico de impulsos sinestésicos que lhe impunha o dedo em riste do mundo exterior. O medo o arremessou contra o córtex. Quanto mais o puxavam para fora mais ele se encolhia dentro. Desgarrar-se do útero dela seria o primeiro passo em direção a morte. Lamentou-se por não ter ventosas às mãos. Exaurido, escorregou tão logo os frágeis ossos se afastaram. Fora do ventre, a realidade fatídica lhe estendeu os braços e prematura seguiu a vida breve. Providencial, a miséria com os olhos esbugalhados já havia lhe preparado o leito. Obstinada e sedenta em sua antropofagia cavara uma cova rasa para enterrá-lo ainda pequeno. Foi-se o menino dentro do prazo previsto. Antes que inteirasse dois anos de sobrevida recebeu o Espírito Santo e a Extrema Unção.
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Nina Delfim


segunda-feira, outubro 09, 2006

Aos olhos do mar



Entre uma e outra expressão tua
eu te vi a me olhar
Ao ver que me olhavas
fiz-me tua em teus olhos
Olhei-te pelo prazer de ver
pelo gosto de te ver ali
frente aos meus olhos
olhando para mim
Tu não tinhas aos olhos um olhar comum
os teus
enquanto nos meus
percorriam-me devorando minha nítida visão
Teus sons distantes
lançados além do mar
aos meus ouvidos
ficavam mudos
Palavras não semeadas nasciam súbitas
e só de amor pus-me a falar
Metia-me medo te olhar nos olhos
O que neles eu via
conspiraravam contra mim
Ao navegar em ti
assombros cresciam
pois teus olhos me viam além de mim
mergulhavam em minhas profundezas
desvendando-me frente a ti
Teus olhos
tão lindos
sentiam e falavam por mim
À luz dos olhos teus
fiz-me nua
despi-me de minhas defesas
e fiz amor contigo através da tua retina
Mas refém de tantos outros olhares
o teu olhar não me pertencia
receei então ancorar-me em ti
às pálpebras molhadas te comprimi
Ondas de pensamentos
levaram-me ao fundo de mim
naufraguei em vontades
nadei em dolosas saudades de ti
Agora
com os olhos fechados
sofro por este amor além mar
e cá estou desejando não mais ver-te a me olhar
implorando-te para que nunca mais deixes
os teus olhos sobre os meus.
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Nina Delfim

sábado, outubro 07, 2006

100 asas



Em vôos acorrentados
atravesso ares
e os arcos da íris
em busca de novos versos

Das sobras opacas de palavras
sem textura ou contexto
precipito-me

Vida vaga
sem previsão de epílogo
Da íris opaca escorrem folículos
fracos focos de um pensar não reciclado

Afugento os signos luzentes
da trama de falas em alto relevo
procuro aquilo que dorme tranqüilamente
sob minha sórdida arbitrariedade
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Nina Delfim

domingo, outubro 01, 2006

A rima


Criou-se a si própria
para a alegria dos homens
Bem-aventurados os escolhidos
para prevaricar com ela
Aos habituados à pressa
eu aconselho cautela
Guarde-a na boca
bem embaixo da língua
como um último desejo a ser saboreado
Sedenta
ela vai como o pólen no vento
leve
leviana
espalha-se
fecundando tudo
Não deixe que se perca
perdida se torna vulgar
entrega-se sem qualquer sentimento
Não tente saciá-la
Não se atreva a domá-la
receba-a simplesmente
deixe que venha
assim
como um beijo
No primeiro contato
seja discreto
controle o suor e o desejo
não demonstre excitação
insinue-se apenas
Fique atento ao compasso
ao menor sinal de descuido
acabará aprisionado no tempo comum
que só ela domina
Proteja-se dela
em caso de tormento
não demonstre aflição
através da insegurança ela te invade
alienando idéias
comprometendo o efeito da ação
Nem pense em decifrá-la
ela é cheia de artimanhas
adora delírios e lágrimas
Defenda-se e não se renda
Por fora é obscena
Por dentro ela é suntuosa
comunga recursos sedutores com sintonia perfeita
Cuidado
mantenha distância segura
proximidade exagerada
danifica a razão ocasionando o vício
Possuído por ela
não vai lhe sobrar nada
e sem criatividade
não poderá conquistá-la
Vista de longe parece comum
frívola e circunstancial
mas não se deixe enganar
duvide desta doce aparência
ela é sútil por isto é perigosa
Aproxime-se lentamente
evite tocá-la de impreviso
ela é avessa ao toque não consentido
se faz dura e quase sólida
interferindo em tudo
até mesmo no ritmo da fala
Conserve a paciência
penetrá-la à força
é agir contra o tempo cadenciado
ela tem seu próprio movimento
Seduzida ela inspira
exibe-se exclusiva
mostra-se bela e se faz rara
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Nina Delfim