quarta-feira, maio 23, 2007

Os Escorpiões

Painting "Shards of Red Gold" by Julia Garcia



O mês de Outubro os excitava
Exibiam-se vorazes,
girando ao redor do fogo que os incendiava.
A dança do acasalamento não cessaria até que
vencidos pelo desejo
copulassem.
Cientes da instintiva ação depois do ato,
movimentar-se-iam com cuidado,
adiando ao máximo o orgasmo um do outro.
Apesar do medo, era irresistível.
A nudez constrangida pelo sol escaldante
foi um convite irrecusável e,
ali mesmo,
aos olhos do sol,
fervilharam os hormônios.
Precoces como o instinto manda,
porém próximos demais.
(Nina)

A satisfação lhes reduziu a tolerância
a natureza assassina tomou seu lugar.
O círculo da condescendência se desfez,
feromônios não perfumavam mais.
Súbito e preciso o instinto gritou:
“Defenda-se escorpião!”
Ergueu-se do coito
antes que ela o decepasse,
no peito dela
seu ferrão cravou.
O sangue que escorreu,
ao genoma "meia volta" ordenou.
Volveu um soldado
para no efêmero buscar o que perdura.
E novamente à procura
de sexo e morte partiu.
(Marte)
.
Imune ao veneno inoculado, não se deu por vencida.
Curvada pela dor da fisgada repentina,
lambeu da fenda aberta o sangue Frio que esvaía.
Escorria-lhe por dentro o ódio e,
por entre as pernas,
o desejo de tê-lo inteiro entre elas.
Aquele ataque surpresa seria vingado
da maneira mais dolorosa possível.
Ativando seu arsenal sensitivo,
elaborou com requinte cada um dos passos seguintes.
Esgueirar-se-ia até encontrá-lo.
Acima das quelíceras,
a boca úmida ansiava por sangue, horror e êxtase.
(Nina)
.
Escorpião distraído!
Seu par não se mata com veneno,
toxina lenta e corrosiva.
Apunhala-se no peito.
com um só golpe
decisivo e certeiro...
Ao negar a clareza,
da obsessão se fez presa.
Condenou-se a busca vã,
eterna, incessante,
solitária, distante e pagã.
Insubstancial verdade, que assombra à beça,
nem notou que já cheira a sangue.
Não dos predadores quentes,
mas dos necrófagos vermes.
Arrastando seu telson, antes soberbo,
agarrado a pútrida pinça restante, ainda recusa o jazigo.
Segue em marcha querendo vingança.
Certo da morte.
Certo da paz.
Certo de que a amada de si se aparta.
(Marte)
.
Susceptível à fúria cega, de fogo líquido ela se encheu.
Seus instintos famintos já o cheiravam.
Somente a morte dele a salvaria.
O abscesso aberto,
seria com maestria vingado.
O sangue coagulado a mantinha prisioneira
da ferroada sexual inesperada e seca.
Durante o gozo sibilante dele,
ela o prenderia em seu sexo e,
com uma das pinças, decepar-lhe-ia a vida.
Uma sensação libidinosa antecipada a assanhava.
O prazer macabro do ritual garantir-lhe-ia a mais cruel das glórias.
Seus opérculos genitais sedentos já ardiam febris.
Mesmo sob efeito do veneno, inoculado covardemente em seu peito,
ela já gozava com o premeditado.
A imaginação,
se sobrepunha à carapaça ostensiva.
Sob a couraça, a fria natureza assassina a mantinha aquecida.
(Nina)
.
Andava sem rumo.
Dera-lhe as costas há.muito.
Insistia-lhe o medo. Maya.
O fantasma que o espreitava.
Maya,
o veneno dele e dela.
Maya, a Fúria detenta, o sorriso infantil,
o sexo promíscuo,
castidade servil.
Tudo neles era “aquilo que não é”.
Ao ouvir a música do embate,
fumou um cigarro, como tantos antes.
Soldado, guerreiro sem vitória,
olhou por sobre os ombros e lá estava "aquilo que não é”,
em sangue e cólera
a persegui-lo.
( Marte )
.
A trajetória exaustiva até ele
transformara a fúria em um amor cheio de ódio.
A morte tão desejada se fez vulto.
Uma aura dramática imprevista a envolveu.
De joelhos sobre o que sentia,
rasgou o próprio peito
com um golpe duro e definitivo.
Incapaz de suportar a grandiosidade do gesto,
a tirania chorou pelo instante oferecido.
O acurado instinto de sobrevivência
num ímpeto de amor e fúria tomou-a em seus braços,
sorvendo-lhe a intensa paixão prometida
e toda sua adorável natureza inflexível.
A morte dela era vida.
(Nina)
.
Perplexo, o escorpião desculpou-se pela vida
e por todas as coisas
cujo controle não mais detinha.
Ao corpo mutilado cantou canções,
todas que aprenderam a chamar de "nossas"
e da vingança se redimiu.
Do sangue intenso que do amor jorrava,
viu brotar pétalas rubras.
Em lágrimas, a elas levou seus lábios
e seu último e desnecessário juramento proferiu:
“Deixo-te em paz meu amor!"

(Marte)






Affair de amor e ódio


Excitado ao vê-la ali
exposta
virgem e aberta sem pudores sobre a superfície fria
Exibiu-lhe a boca sedenta e as mãos ansiosas
Despiu-se dos preconceitos e se entregou à magia dela
À mente latejavam idéias incandescentes
A imaginação desativara-lhe os sentidos passivos
Uma fome de expressar volição própria apossou-se dele
desencadeando um processo cognoscitivo descontrolado
Imagens visuais do que faria com ela queimavam-lhe à boca do estômago
O sentido olfativo intensificado aguçava-lhe a vontade de cheirá-la inteira
Desgustá-la-ia com brutalidade para marcar-se nela em definitivo
Ao observá-la tão indefesa
exteriorizou os mais promíscuos e perversos pensamentos
A rotina pungente o tornara um tolo a repetir-se
Sentia-se estreito e sem qualquer resíduo criativo
Tudo o incitava a livrar-se do convencional
A libido pulsava sob as veias diante a inusitada façanha
As palavras dilatavam-se dentro dele erotizando-o
Um enredo subconsciente surgiu das evocações imaginadas
Quis naquele momento
fazer da inspiração uma secreção corpórea
Quis jorrar-se em rios de leite
Tomado por uma ereção de versos medíocres
excitou-se e num ato brusco atirou-se bruto sobre ela
À mente doentia entregou-se
iniciando com euforia o seu fetiche literário
Diante do inesperado gesto de selvageria
ela nada pôde fazer para contê-lo
Aquela furiosa intervenção súbita a imobilizara por completo
À contragosto só restou obedecer-lho
e às mãos que a prendiam submeter-se
Ao vê-la ali escravizada
reduzida à condição de mero objeto-estímulo
tocou-a com precisão vocabular
devorando-a com os olhos
Severas punições lhe seriam impostas
Seduzi-la-ia antes de marcá-la com a sua eficiência poética
Torturá-la-ia até que o êxtase fosse um desejo incontrolável
Agarrou-se à fragilidade com as unhas
Agraciá-la-ia com o lirismo restante
Amor e ódio se confrontariam num embate vibrante
Violentá-la-ia com todos os ornamentos lingüísticos
A repetição de movimentos proporcionaria o contexto adequado
O último dos seus atos repulsivos seria nela realizado
Com aguçada percepção estética
inseriu-lhe prazerosamente a língua vigorosa
Cada gemido colhido deveria se tornar físico
Entrou em aflição silenciosa ao percebe-la resistente
involuntárias contrações sobrevieram diante a negação
Quanto mais ela se fechava
maior era a vontade de enterrar-se dentro
A posição arbitrária o privilegiava
favorecendo uma penetração dolorosa e alucinante
Abriu-a com rudeza
Meteu-lhe palavras duras até às entranhas
Mãos desesperadas percorriam-na por toda a extensão
Ele era o carrasco e ela
a vítima da sua obcecada inspiração
Adestrá-la-ia à força até torná-la receptiva ao que trazia em si
Cravar-lhe-ia os dentes às partes mais íntimas
e se preciso fosse
rasgar-lhe-ia frente e verso
A respiração ora contida e ora pesada
já anunciava o instante preciso
Banhando-a com versos suados
ofegante
entrava e saia com voracidade e por vezes sucessivas
Num ir e vir primitivo ele a invadia ostensivamente
Movimentava-se confiante
enfiando e retirando-lhe palavras
certo de que um elo indissociável se estabeleceria entre ambos
O silêncio dela cadenciava o ritmo da covardia dele
Um potencial contestável anunciou o momento tão desejado
O açoite semântico contínuo e bruto o colocara à beira do êxtase
O mais intenso espasmo expressivo não tardaria
Em sofrimento mudo ela implorou que o ato fosse concluído
Todo o corpo dele tremia e sem que pudesse se conter
à face clara desmaiada sobre a mesa
despejou-se aos jatos
impregnando-a de versos sujos
Da fenda aberta escorreu-se vulgar com gosto de pele e pêlos
Faltava à inspiração restante a suavidade e a beleza das formas
Sobre a folha SubMetida não havia qualquer sintoma de poesia
Aquele era apenas mais um exercício literário desprezível do poeta
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Nina Delfim

Interstício


Expostos os músculos
aliciamos a carne
vestimo-nos de gozo
e do falo em fogo
entranhando o escuro
que devora homens
derivamos
líquidos

desaguamos frágeis
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Nina Delfim

terça-feira, maio 22, 2007

Apologia da estupidez


Com a atenção fixa no cenário constante de resquícios iniciou os procedimentos habituais enfiando as mãos pelas nervuras abertas. O passado não interessava. A vida, um detalhe desprezível. Há muito a morte lhe trazia o sustento. À garganta, a lâmina ácida dos enganos se movia sobre o eixo da contrariedade, amontoando restos condenados à servidão. Era apenas um corpo de meia idade e de baixa estatura que cheirava mal. Orgulhava-se do automatismo adquirido. Não seria desafio à competência cortá-lo em inúmeros pedaços com os olhos fechados.
Concluída a dissecação, uma bolha de silêncio pairou pesada sobre o tema e das incisões feitas vazou um caldo grosso de palavras, confirmando a causa mortis como intoxicação verbal.
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Nina Delfim

Carnívora flor



Reparou na protagonista, ignorando-lhe a hábil capacidade de captura.
Ainda que não a visse por dentro, com sua visibilidade outra podia sentir o leve aroma do erotismo salientando o orifício que logo mais adiante o devoraria. Boca sedenta. Carnívoro abismo de fluidos translúcidos. Mil dentes aptos e ansiosos por metamorfosear pele, veias e músculos. Na eloquência de seus movimentos deslizou salivante buraco adentro esbarrando acidentalmente nos pêlos colantes que de imediato o levaram ao escuro que de tão profundo mal se via a vulva à míngua encolhida em sua apoteose.
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Nina Delfim

segunda-feira, maio 21, 2007

Floração



Consinta que eu sinta o que sinto
Não quero um amor resumido
Quero detalhes
Quero sintomas
Quero entrelaces
Mãos
Pernas & beijos
Sensações de sentimentos
Vem
Prova de mim
Saciar é a ordem
Aconchegue-se
Adormeça em meus seios
Transpire seus anseios
Prende o meu desejo no seu
Mexe comigo
Remexa consigo
Inverta-nos
Converta-nos num só corpo
E do seu jeito
(sem jeito)
lambuze-nos de amor
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Nina Delfim

domingo, maio 20, 2007

O indulto



No ápice da angústia, mutilou-se. Pequenos detalhes se interpuseram entre a sensação de morte e o desamparo, mas nenhum gemido poderia tornar sonoro o pavor sentido diante do fim da própria coragem. Heróis devem morrer em silêncio. Não há clemência para a vida que se sustenta sobre paradigmas.
Em poucos segundos, o instante irreversível o faria tombar em glória. Ungido por faltas insistia-lhe o incomodo da resistente trama de fios comprimindo o desejo de
ir para além das ausências. À mercê da culpa, a estrutura atrofiada se mostraria inútil. Somente aos olhos restariam alguma expressão, aquela que desce à altura das linhas que conduzem um homem ao esquecimento e que consagra os seus últimos pensamentos.
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Nina Delfim

sexta-feira, maio 18, 2007

Amor de bicho



Libido eriçada

pele de pêlos à mostra
sede selvagem de seivas
de gritos
de dentes cravados
mordidas de bicho
do mato
que queima
que arde
em febre constante
prazer dolorido
arranhando o desejo
aninhando o cio
por cima farejo
por baixo latejo
rastejo
imploro:

me lambe
me morde
faz coisa de bicho
do-mato
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Nina Delfim