terça-feira, outubro 24, 2006

Nudas veritas



Recuou. Precisava de um pouco mais de tempo. Parecia-lhe indissolúvel o elo estabelecido entre ambos. A luz flamejante iluminou o caminho. Absorto pelas sensações internas desviou o olhar da tentadora curiosidade em vislumbrar as armadilhas que o aguardavam. Resistiria com bravura ao mosaico de impulsos sinestésicos que lhe impunha o dedo em riste do mundo exterior. O medo o arremessou contra o córtex. Quanto mais o puxavam para fora mais ele se encolhia dentro. Desgarrar-se do útero dela seria o primeiro passo em direção a morte. Lamentou-se por não ter ventosas às mãos. Exaurido, escorregou tão logo os frágeis ossos se afastaram. Fora do ventre, a realidade fatídica lhe estendeu os braços e prematura seguiu a vida breve. Providencial, a miséria com os olhos esbugalhados já havia lhe preparado o leito. Obstinada e sedenta em sua antropofagia cavara uma cova rasa para enterrá-lo ainda pequeno. Foi-se o menino dentro do prazo previsto. Antes que inteirasse dois anos de sobrevida recebeu o Espírito Santo e a Extrema Unção.
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Nina Delfim


6 comentários:

Anônimo disse...

A morte, encarada como fim.
Sempre o é.
Sempre com pesar profundo.
E quando a mote se manifesta tão prematuramente assim, choca.

Mas continua sendo a morte.

Lindo texto que desnuda a vida.
A passagem do ventre
Para a Breve Morte
Sempre digo que a vida é curta
A morte é longa
É longa e calma como essa ondas
Que vêm e que vão em nossas vidas
Nunca dizendo a hora de nossa partida.
Este é o segredo da morte.
Só ela sabe a hora.

Beijos no seu Coração.
Wladi

Anônimo disse...

Nina, é singular a forma por que estrutura seus textos, envolvendo para evolver, como arrancando (palavra bem a propósito) o leitor e arremetendo-o a dimensões e vislumbres. Encanta-me o seu mundo, a sua "psyché". Sinto-a, de algum modo...
30/08/2006 22h07

Anônimo disse...

Mais um microconto excepcional, Ninah! Um único parágrafo que nos leva por corredores que nunca imaginamos que poderiamos percorrer; corredores de agonia. Isso é coisa de quem sabe escrever! Um beijo!
02/09/2006 01h47

Anônimo disse...

Triste, bem triste. a idéia de que o mundo exterior atrai, seduz, consome e mata ficou bem forte em mim nesse conto. interessante ver a visão de um bebê sobre isso tudo. seu estilo já está se definindo aos meus olhos: frases curtas, rápidas, afiadas; cada período traduz uma idéia (ou um sentimento ou uma sensação) independente. Começar o conto com "recuou, ponto" é muito forte, direto, sem rodeios desnecessários. achei alguns elementos de poesia simbolista no texto: "luz flamenjante" (faltava só estar maiúsculo, tipo Luz Flamejante... aí ia ficar totalmente simbolista), "mosaico de impulsos sinestésicos", "morte", "miséria", toda essa decrepitude conflitando com o novo, o belo, a vida, expresso em termos simples e poéticos. já a fatalidade das coisas me leva a associar o conto a um decadentismo pós-moderno... a uma descrença absoluta. realmente nao entendi a função do elemento religioso no fim do texto. Acho que dava pra dizer que ele morreu de forma mais crua e sagaz, mais dolorosa, até. mas deve haver uma razão; estou esperando seu comentário de volta. gostei bastante. e o título em latim, por que mesmo em latim? deixa um leve esclarecimento na minha página ou no orkut. hehe, eu sou meio desconfiado com o latim, as pessoas da faculdade gostam de usar para se passarem por intelectuais. bjo, léo
10/09/2006 12h47

Anônimo disse...

Muito bom. Imagens ricas, secura necessária, texto enxugado. A emoção rompe como num parto, um parto difícil.Amei! Estava com muitas saudades dos seus escritos.__Beijos.
30/09/2006 16h15

Anônimo disse...

Parabéns! Seus textos me emocionam e me inspiram a continuar nesse vasto e maravilhoso mundo da literatura! Abraços!
23/11/2006 10h01